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A entrevista faz parte do projeto "[[Histórias, Memórias e Oralidades da luta social por terra e moradia na região de Jacarepaguá de 1960 a 2016]]", desenvolvido pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz- Mata Atlântica, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz. Nesse episódio, o entrevistada é Almir Paulo - um veterano nas lutas populares no Rio de Janeiro, que foi presidente da Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro (Famerj) de 1987 a 1989.[[File:Almir Paulo foto.png|border|center|500px|Almir Paulo foto.png]] | A entrevista faz parte do projeto "[[Histórias, Memórias e Oralidades da luta social por terra e moradia na região de Jacarepaguá de 1960 a 2016]]", desenvolvido pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz- Mata Atlântica, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz. Nesse episódio, o entrevistada é Almir Paulo - um veterano nas lutas populares no Rio de Janeiro, que foi presidente da Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro (Famerj) de 1987 a 1989.[[File:Almir Paulo foto.png|border|center|500px|Almir Paulo foto.png]] | ||
== Entrevista == | |||
{{#evu:https://www.youtube.com/watch?v=3aVQUltO7Ck}} | |||
== Transcrição da Entrevista == | == Transcrição da Entrevista == | ||
<p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Eu sou Almir Paulo- 54 anos. Tenho uma experiência de vida muito intensa, muito marcante que me levou a militar intensamente em duas questões.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>A primeira a defesa de moradia, a luta contra os especuladores, a luta contra os grileiros, a luta contra aqueles que tentam tirar dos mais pobres, os mais humildes o seu pedaço de chão.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Minha vida é marcada pelo trator em 1969, quando meu pai, minha mãe, eu e meu irmão, moradores da Ilha das Dragas, fomos removidos à força, de uma comunidade pacificada, tranquila, organizada que vivia na beira da lagoa Rodrigo de Freitas no Leblon - entre o clube Caiçara e perto do clube de Regatas do Flamengo, em frente ao Monte Líbano. E eu guardo a cena com muita emoção mesmo. Vendo minha mãe olhando nossa casa sendo derrubada por um trator. Eu tinha 9 anos e fomos jogados numa gaiola.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Fomos trazidos para a Cidade de Deus. E começa todo sofrimento e luta. Quem eu sou hoje, eu sou fruto desta remoção. Os primeiros anos na Cidade de Deus foram uma experiência muito dolorosa. Nós tínhamos tudo, a amizade, escola, trabalho, mas a nossa favela parte foi para a Cidade de Deus, parte para Cidade Alta. E chegando à Cidade de Deus fomos divididos: parte foi para triagem, parte para casas e outros para os apartamentos.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>A minha mãe era camareira, passadeira, cozinheira e ela trabalhava em varias casas na zona sul. E naquela época ir da Cidade de Deus para a Gávea era sofrido. Mais de duas horas em estradas estreitas, ruins, tendo que pegar 3 ou 4 ônibus. E meu pai era trabalhador da DLU-Departamento de Limpeza urbana, hoje a COMLURB, em Copacabana. E ele ia pra lá todos os dias. Depois ele conseguiu transferência para o Hospital Santa Maria. Aquele momento foi muito difícil. Principalmente para minha mãe. Ela perdeu os amigos e ficou longe de todo mundo, tendo que trabalhar longe o tempo inteiro, saia cedo de casa.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Eu e meu irmão perdemos a escola. E fomos parar no colégio Gardênia Azul. Foi legal- sobrevivi. A partir de dos meus 15 anos, eu já trabalhava ajudando minha mãe nas faxinas na zona sul, e ela me ensinou a ser jardineiro.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Papai e mamãe em 68 tiveram que se esconder para não serem presos. Muitos líderes das comunidades foram presos, torturados, ficaram desaparecidos por algum tempo. Só depois que houve a remoção é que estes líderes voltaram. Foram libertados. E esta experiência marcou muito.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Na Cidade de Deus minha mãe era sindica do prédio. Viveu os problemas iniciais mesmo. Aquela história de “dia falta água, de noite falta luz” era verdade. Não tinha assistência médica.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Eu me lembro que a luta mais forte que fiz na Cidade de Deus foi pela saúde. Em 80/81 fizemos o Encontro Popular pela Saúde. E em seguida conseguimos a instalação de Unidade de Atendimento Primário na Cidade de Deus, foi uma luta histórica do Comocide.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Meu nível de participação começa com o teatro- foi o primeiro grande momento de me manifestar, de me colocar por inteiro, para entender o que vivíamos na Cidade de Deus, com 17/18 anos. Criamos um grupo de “Teatro e Cine Clube Perspectiva”.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Paulo Lins participou do grupo- ele cuidava do cinema- pegava os filmes nas embaixadas, gratuitos, porque não tínhamos grana para comprar. Fizemos um trabalho intenso e surgiu o jornal O Amanhã e junto com a Revista Nós, simbolizou um momento de muita resistência. Momento em que começamos a perceber que a Cidade de Deus se valorizava à medida em que a Barra ia sendo ocupada.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Na medida em que a Barra crescia, e o Recreio dos Bandeirantes se desenvolvia a gente via a ganância dos grupos imobiliários muito fortes. Tinha também desrespeitos às leis urbanas, aos gabaritos. O Plano Lucio Costa tentava ordenar mas havia desrespeito, com autorização de grandes condomínios, grandes espigões. E tudo se aproximando muito da Cidade de Deus. Aí começa nossa compreensão de que tínhamos que ter uma luta intensa na Cidade de Deus para melhorar a qualidade de vida: na saúde, na educação, na moradia. Porque é inadmissível, que centenas de moradores vivessem ainda em situações sub-humanas, em vagões, em triagens. Eram moradias que pareciam um grande vagão de trem, cubículo de 3/3m², onde viviam pais e 5 e 6 irmãos, com esgoto a céu aberto, com água contaminada. Se chovia enchia tudo, se fazia muito calor era insuportável, teto muito baixo, enfim eram condições sub-humanas.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Então nós compreendíamos que se intensificássemos a luta pela qualidade de vida na Cidade de Deus, nós estaríamos garantindo a permanência da comunidade diante das ameaças destes grandes grupos imobiliários, que foram se instalando, dominaram e dominam a Barra ainda hoje. Essa foi a compreensão daquele grupo de jovens. E não posso deixar de falar de 3 grandes nomes na Cidade de Deus- que tenho orgulho de ter convivido: João Batista, João de Pinho e Sr. Benedito. João Batista e Benedito, que eram dois comunistas, da velha guarda, que deram a vida pela Cidade de Deus e nos ensinaram muito.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>De vez em quando tínhamos lá nossas divergências, mas cresci observando as atitudes sempre éticas determinadas, e depois compreendendo melhor o João de Pinho e vendo que ele tinha escolhido um lado- o lado da gente- organizar o povo da Cidade de Deus e lutar por melhores condições de vida.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>E nós conseguimos construir um coletivo na Cidade de Deus muito interessante. Era um grupo de socialistas, vindo da militância. Ninguém ali estudou, o mais estudioso era o Paulo Canamês, que influenciou outros jovens como Wellington- que se tornou um intelectual- o Pablito. Eu me orgulho muito de ter trazido algumas pessoas para a luta. A Cleonice Dias, o Adalton Pereira. E mais, a AMOATA, a AMAF nós ajudamos a fundar varias outras e construir o que tem hoje, na FAM Rio, o que foi a zonal da FAMERJ, foi a Cidade de Deus que ajudou a existir.</big></span></span></p> | <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Eu sou Almir Paulo- 54 anos. Tenho uma experiência de vida muito intensa, muito marcante que me levou a militar intensamente em duas questões.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>A primeira a defesa de moradia, a luta contra os especuladores, a luta contra os grileiros, a luta contra aqueles que tentam tirar dos mais pobres, os mais humildes o seu pedaço de chão.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Minha vida é marcada pelo trator em 1969, quando meu pai, minha mãe, eu e meu irmão, moradores da Ilha das Dragas, fomos removidos à força, de uma comunidade pacificada, tranquila, organizada que vivia na beira da lagoa Rodrigo de Freitas no Leblon - entre o clube Caiçara e perto do clube de Regatas do Flamengo, em frente ao Monte Líbano. E eu guardo a cena com muita emoção mesmo. Vendo minha mãe olhando nossa casa sendo derrubada por um trator. Eu tinha 9 anos e fomos jogados numa gaiola.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Fomos trazidos para a Cidade de Deus. E começa todo sofrimento e luta. Quem eu sou hoje, eu sou fruto desta remoção. Os primeiros anos na Cidade de Deus foram uma experiência muito dolorosa. Nós tínhamos tudo, a amizade, escola, trabalho, mas a nossa favela parte foi para a Cidade de Deus, parte para Cidade Alta. E chegando à Cidade de Deus fomos divididos: parte foi para triagem, parte para casas e outros para os apartamentos.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>A minha mãe era camareira, passadeira, cozinheira e ela trabalhava em varias casas na zona sul. E naquela época ir da Cidade de Deus para a Gávea era sofrido. Mais de duas horas em estradas estreitas, ruins, tendo que pegar 3 ou 4 ônibus. E meu pai era trabalhador da DLU-Departamento de Limpeza urbana, hoje a COMLURB, em Copacabana. E ele ia pra lá todos os dias. Depois ele conseguiu transferência para o Hospital Santa Maria. Aquele momento foi muito difícil. Principalmente para minha mãe. Ela perdeu os amigos e ficou longe de todo mundo, tendo que trabalhar longe o tempo inteiro, saia cedo de casa.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Eu e meu irmão perdemos a escola. E fomos parar no colégio Gardênia Azul. Foi legal- sobrevivi. A partir de dos meus 15 anos, eu já trabalhava ajudando minha mãe nas faxinas na zona sul, e ela me ensinou a ser jardineiro.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Papai e mamãe em 68 tiveram que se esconder para não serem presos. Muitos líderes das comunidades foram presos, torturados, ficaram desaparecidos por algum tempo. Só depois que houve a remoção é que estes líderes voltaram. Foram libertados. E esta experiência marcou muito.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Na Cidade de Deus minha mãe era sindica do prédio. Viveu os problemas iniciais mesmo. Aquela história de “dia falta água, de noite falta luz” era verdade. Não tinha assistência médica.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Eu me lembro que a luta mais forte que fiz na Cidade de Deus foi pela saúde. Em 80/81 fizemos o Encontro Popular pela Saúde. E em seguida conseguimos a instalação de Unidade de Atendimento Primário na Cidade de Deus, foi uma luta histórica do Comocide.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Meu nível de participação começa com o teatro- foi o primeiro grande momento de me manifestar, de me colocar por inteiro, para entender o que vivíamos na Cidade de Deus, com 17/18 anos. Criamos um grupo de “Teatro e Cine Clube Perspectiva”.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Paulo Lins participou do grupo- ele cuidava do cinema- pegava os filmes nas embaixadas, gratuitos, porque não tínhamos grana para comprar. Fizemos um trabalho intenso e surgiu o jornal O Amanhã e junto com a Revista Nós, simbolizou um momento de muita resistência. Momento em que começamos a perceber que a Cidade de Deus se valorizava à medida em que a Barra ia sendo ocupada.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Na medida em que a Barra crescia, e o Recreio dos Bandeirantes se desenvolvia a gente via a ganância dos grupos imobiliários muito fortes. Tinha também desrespeitos às leis urbanas, aos gabaritos. O Plano Lucio Costa tentava ordenar mas havia desrespeito, com autorização de grandes condomínios, grandes espigões. E tudo se aproximando muito da Cidade de Deus. Aí começa nossa compreensão de que tínhamos que ter uma luta intensa na Cidade de Deus para melhorar a qualidade de vida: na saúde, na educação, na moradia. Porque é inadmissível, que centenas de moradores vivessem ainda em situações sub-humanas, em vagões, em triagens. Eram moradias que pareciam um grande vagão de trem, cubículo de 3/3m², onde viviam pais e 5 e 6 irmãos, com esgoto a céu aberto, com água contaminada. Se chovia enchia tudo, se fazia muito calor era insuportável, teto muito baixo, enfim eram condições sub-humanas.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>Então nós compreendíamos que se intensificássemos a luta pela qualidade de vida na Cidade de Deus, nós estaríamos garantindo a permanência da comunidade diante das ameaças destes grandes grupos imobiliários, que foram se instalando, dominaram e dominam a Barra ainda hoje. Essa foi a compreensão daquele grupo de jovens. E não posso deixar de falar de 3 grandes nomes na Cidade de Deus- que tenho orgulho de ter convivido: João Batista, João de Pinho e Sr. Benedito. João Batista e Benedito, que eram dois comunistas, da velha guarda, que deram a vida pela Cidade de Deus e nos ensinaram muito.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>De vez em quando tínhamos lá nossas divergências, mas cresci observando as atitudes sempre éticas determinadas, e depois compreendendo melhor o João de Pinho e vendo que ele tinha escolhido um lado- o lado da gente- organizar o povo da Cidade de Deus e lutar por melhores condições de vida.</big></span></span></p> <p style="text-align:justify"><span style="font-size:small;"><span style="line-height:115%"><big>E nós conseguimos construir um coletivo na Cidade de Deus muito interessante. Era um grupo de socialistas, vindo da militância. Ninguém ali estudou, o mais estudioso era o Paulo Canamês, que influenciou outros jovens como Wellington- que se tornou um intelectual- o Pablito. Eu me orgulho muito de ter trazido algumas pessoas para a luta. A Cleonice Dias, o Adalton Pereira. E mais, a AMOATA, a AMAF nós ajudamos a fundar varias outras e construir o que tem hoje, na FAM Rio, o que foi a zonal da FAMERJ, foi a Cidade de Deus que ajudou a existir.</big></span></span></p> |