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[[Arquivo:Racismo religioso.jpg|alt=Manifestação contra o Racismo Religioso|right|miniaturadaimagem|Manifestação contra o Racismo Religioso]]'''[[Racismo Religiosos]]''' - De acordo com algumas concepções africanas, a palavra é regida pelo elemento fogo. Ela pode tanto queimar, quanto aquecer. É por isso que ativistas e defensores de direitos humanos ligados ao movimento negro reconhecem a importância de refletir sobre termos amplamente absorvidos pelo senso comum. Neste verbete, Carolina Rocha traz elementos para discussão sobre o racismo religioso no Brasil. | |||
<blockquote>Os brancos evangélicos estão sempre atrás do diabo, e quem é o diabo? Ele é um espírito que está sempre em um negro. A caça ao diabo começa a eliminar aos poucos a cultura e memória coletiva (Paulina Chiziane)</blockquote> | |||
Autoria: Carolina Rocha. | Autoria: Carolina Rocha. | ||
== Apresentação == | |||
Desde o jardim de infância, eu aprendi que anjinhos são loirinhos e diabinhos são pretinhos, minha professora fazia, inclusive, chifrinhos com o cabelo crespo do Josué, meu coleguinha. Não o chamava de preto, mas o menino já havia sido um macaquinho simpático no Dia do Meio Ambiente e o saci na Festa do Folclore. Eu gostaria que essa fosse apenas a minha história, mas é a de tantas outras pessoas negras neste país. Gostaria de ter lido ainda pequena a obra da escritora Sonya Silva, somada a tantas outras escritoras da literatura afro-brasileira, que, preocupada com as narrativas construídas para crianças negras, criou uma história com um anjo de chocolate<ref>Existe um documentário incrível contando a história da escritora, que faz o debate sobre representatividade nas histórias infantis, chamado “Anjo de Chocolate”, do cineasta Clementino Junior. </ref>. Mas eu só a conheci já com 30 anos. | Desde o jardim de infância, eu aprendi que anjinhos são loirinhos e diabinhos são pretinhos, minha professora fazia, inclusive, chifrinhos com o cabelo crespo do Josué, meu coleguinha. Não o chamava de preto, mas o menino já havia sido um macaquinho simpático no Dia do Meio Ambiente e o saci na Festa do Folclore. Eu gostaria que essa fosse apenas a minha história, mas é a de tantas outras pessoas negras neste país. Gostaria de ter lido ainda pequena a obra da escritora Sonya Silva, somada a tantas outras escritoras da literatura afro-brasileira, que, preocupada com as narrativas construídas para crianças negras, criou uma história com um anjo de chocolate<ref>Existe um documentário incrível contando a história da escritora, que faz o debate sobre representatividade nas histórias infantis, chamado “Anjo de Chocolate”, do cineasta Clementino Junior. </ref>. Mas eu só a conheci já com 30 anos. | ||
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E ainda segundo o Disque 100, serviço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no primeiro semestre de 2021, o estado do Rio de Janeiro ultrapassou São Paulo e assumiu o primeiro lugar em denúncias registradas por vítimas de intolerância ligadas ao candomblé, à umbanda e a outras religiões de matriz africana. 71% das vítimas de intolerância religiosa são mulheres e praticantes de candomblé e de umbanda (TINOCO; GUIMARÃES, 2021, n. p.). | E ainda segundo o Disque 100, serviço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no primeiro semestre de 2021, o estado do Rio de Janeiro ultrapassou São Paulo e assumiu o primeiro lugar em denúncias registradas por vítimas de intolerância ligadas ao candomblé, à umbanda e a outras religiões de matriz africana. 71% das vítimas de intolerância religiosa são mulheres e praticantes de candomblé e de umbanda (TINOCO; GUIMARÃES, 2021, n. p.). | ||
== “A culpa é do diabo”: a longa duração do racismo e da intolerância religiosa no Brasil == | |||
No período colonial, era expressamente proibido professar outra religião que não fosse a da Igreja Católica Apostólica Romana. E mais do que isso, a cultura douta europeia cristã — com seus códigos, ritos, práticas e formas de construção de pensamento, entendimento e conhecimento — colocou-se como parâmetro único de civilidade e humanidade. Enquanto território colonizado, nós herdamos essa sentença. É o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019) chama de “perigo de uma história única”. E, como nos diz o sociólogo e jornalista Muniz Sodré (2017), é importante compreender as consequências disto a partir do pressuposto de que “toda verdade única é germe de violência”. | No período colonial, era expressamente proibido professar outra religião que não fosse a da Igreja Católica Apostólica Romana. E mais do que isso, a cultura douta europeia cristã — com seus códigos, ritos, práticas e formas de construção de pensamento, entendimento e conhecimento — colocou-se como parâmetro único de civilidade e humanidade. Enquanto território colonizado, nós herdamos essa sentença. É o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019) chama de “perigo de uma história única”. E, como nos diz o sociólogo e jornalista Muniz Sodré (2017), é importante compreender as consequências disto a partir do pressuposto de que “toda verdade única é germe de violência”. | ||
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O que os povos ocidentais cristãos classificaram como religião diz respeito não só ao espaço de vivências da espiritualidade, da ritualística e das devoções dos povos afro-pindorâmicos, mas à sua identidade coletiva, aos seus valores socioculturais, ao seu entendimento de mundo, de humanidade, de natureza, de comunidade e de vida, que eram/são distintos. A negação e o aniquilamento do “outro” foram recursos usados para a afirmação de si. | O que os povos ocidentais cristãos classificaram como religião diz respeito não só ao espaço de vivências da espiritualidade, da ritualística e das devoções dos povos afro-pindorâmicos, mas à sua identidade coletiva, aos seus valores socioculturais, ao seu entendimento de mundo, de humanidade, de natureza, de comunidade e de vida, que eram/são distintos. A negação e o aniquilamento do “outro” foram recursos usados para a afirmação de si. | ||
A partir do século XVIII, com o questionamento dos filósofos iluministas sobre o monopólio de conhecimento produzido no interior das igrejas, associado aos poderes dos reis, os europeus começaram a traçar uma explicação para as diferenças baseada na racionalidade universal e em uma história cumulativa e linear. Assim, começaram a operar o conceito de raça, já existente, na época, nas ciências naturais. O problema maior não foi classificar os seres humanos em raças, afinal, a própria história mostra que essa é uma necessidade humana constante, mas hierarquizá-las. Primeiro, a cor da pele foi o elemento fundamental para operacionalizar essa construção; depois, no século XIX, agrega-se a esse modelo outras características, ligadas à morfologia, tais como as formas do nariz, da boca, do queixo e do crânio: <blockquote>assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação. A classificação da humanidade em raças hierarquizadas desembocou numa teoria pseudo-científica, a raciologia, que ganhou muito espaço no início do século XX. Na realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana. (MUNANGA, 2003, p. 5). </blockquote>No século XXI, com o desenvolvimento da genética, a ideia de raça, do ponto de vista biológico, é refutada, pois descobre-se que não há no sangue humano componentes químicos capazes de estabelecer distinções e hierarquias. Tornou-se, portanto, um conceito carregado de ideologia, muitas vezes escamoteada por relações de poder e de dominação, expressando uma realidade social e política: <blockquote>o racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, linguísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo à qual ele pertence (MUNANGA, 2003, p. 8).</blockquote>Embora a ciência ocidental tenha provado que, do ponto de vista biológico, raça não existe, essa constatação é insuficiente para fazer desaparecerem as categorias mentais, alterar os comportamentos sociais e transformar o cerne das instituições, projetos e dinâmicas nutridas por essa lógica. Assim, como diz o professor Munanga (2005-6, p. 10), “o difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos”, em mais de três séculos de elaboração dessas teorias, amplamente disseminadas. | A partir do século XVIII, com o questionamento dos filósofos iluministas sobre o monopólio de conhecimento produzido no interior das igrejas, associado aos poderes dos reis, os europeus começaram a traçar uma explicação para as diferenças baseada na racionalidade universal e em uma história cumulativa e linear. Assim, começaram a operar o conceito de raça, já existente, na época, nas ciências naturais. O problema maior não foi classificar os seres humanos em raças, afinal, a própria história mostra que essa é uma necessidade humana constante, mas hierarquizá-las. Primeiro, a cor da pele foi o elemento fundamental para operacionalizar essa construção; depois, no século XIX, agrega-se a esse modelo outras características, ligadas à morfologia, tais como as formas do nariz, da boca, do queixo e do crânio: <blockquote>assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação. A classificação da humanidade em raças hierarquizadas desembocou numa teoria pseudo-científica, a raciologia, que ganhou muito espaço no início do século XX. Na realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana. (MUNANGA, 2003, p. 5). </blockquote>No século XXI, com o desenvolvimento da genética, a ideia de raça, do ponto de vista biológico, é refutada, pois descobre-se que não há no sangue humano componentes químicos capazes de estabelecer distinções e hierarquias. Tornou-se, portanto, um conceito carregado de ideologia, muitas vezes escamoteada por relações de poder e de dominação, expressando uma realidade social e política: | ||
<blockquote>o racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, linguísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo à qual ele pertence (MUNANGA, 2003, p. 8).</blockquote> | |||
Embora a ciência ocidental tenha provado que, do ponto de vista biológico, raça não existe, essa constatação é insuficiente para fazer desaparecerem as categorias mentais, alterar os comportamentos sociais e transformar o cerne das instituições, projetos e dinâmicas nutridas por essa lógica. Assim, como diz o professor Munanga (2005-6, p. 10), “o difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos”, em mais de três séculos de elaboração dessas teorias, amplamente disseminadas. | |||
O conceito de raça se opera, hoje, como uma construção sociológica e uma categoria social. Algumas vertentes têm defendido a extinção do termo e se recusado a fazer um debate sobre racismo, sob alegação de que ele não é operante, ignorando, de forma intencional, o quanto está arraigado no imaginário social e se recusando, portanto, a admitir um grave problema. No Brasil, as construções teóricas, intelectuais e políticas em torno do mito da democracia racial adiaram bastante um debate sólido e honesto sobre a implementação das políticas de “ação afirmativa” e a necessidade de um sistema educacional que esteja comprometido com uma história diversa e múltipla. | O conceito de raça se opera, hoje, como uma construção sociológica e uma categoria social. Algumas vertentes têm defendido a extinção do termo e se recusado a fazer um debate sobre racismo, sob alegação de que ele não é operante, ignorando, de forma intencional, o quanto está arraigado no imaginário social e se recusando, portanto, a admitir um grave problema. No Brasil, as construções teóricas, intelectuais e políticas em torno do mito da democracia racial adiaram bastante um debate sólido e honesto sobre a implementação das políticas de “ação afirmativa” e a necessidade de um sistema educacional que esteja comprometido com uma história diversa e múltipla. | ||
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Quanto mais o fogo ardia | Quanto mais o fogo ardia | ||
Ela dava gargalhada...</blockquote>Observo muitas pessoas nos tempos atuais dizendo que algumas declarações sustentadas por igrejas e por fiéis neopentecostais são frutos da “ignorância”, principalmente os discursos que responsabilizam o Diabo — e suas/seus intermediárias/os — pelos males do mundo. Essa é uma inverdade, pois tal construção é fruto de racionalidade, ainda que esteja a serviço de uma ideologia, com vertente religiosa. Da mesma forma que o racismo, muitas vezes também visto como “ignorância”, é resultado de uma construção filosófica e científica. Por isso, para Silvio Almeida (2019), não existe racismo sem uma teoria racista. Nesse caso, a situação é ainda mais emblemática, porque foi/é uma teoria elaborada pela ciência, que possui autoridade, status de incontestabilidade. | Ela dava gargalhada...</blockquote> | ||
Observo muitas pessoas nos tempos atuais dizendo que algumas declarações sustentadas por igrejas e por fiéis neopentecostais são frutos da “ignorância”, principalmente os discursos que responsabilizam o Diabo — e suas/seus intermediárias/os — pelos males do mundo. Essa é uma inverdade, pois tal construção é fruto de racionalidade, ainda que esteja a serviço de uma ideologia, com vertente religiosa. Da mesma forma que o racismo, muitas vezes também visto como “ignorância”, é resultado de uma construção filosófica e científica. Por isso, para Silvio Almeida (2019), não existe racismo sem uma teoria racista. Nesse caso, a situação é ainda mais emblemática, porque foi/é uma teoria elaborada pela ciência, que possui autoridade, status de incontestabilidade. | |||
Em relação à tentativa de solucionar ou de amenizar desafios contemporâneos como o racismo e a intolerância religiosa, há um argumento muito comum, amplamente mobilizado, que passa pela ideia de que o problema é a falta de educação, entretanto: “No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 71). Afinal, todas as teorias mencionadas anteriormente faziam parte do programa educacional religioso e laico. É nítido que a educação que defendemos é distinta desses modelos conservadores e opressores, que a escrita é um importante campo de disputas da luta antirracista, que precisamos elaborar e difundir outras narrativas e versões da história e impulsionar letramento racial, mas esse debate precisa ir além: “pois é preciso discutir a escravidão e o racismo sob o prisma da economia política” (ALMEIDA, 2019, p.182). | Em relação à tentativa de solucionar ou de amenizar desafios contemporâneos como o racismo e a intolerância religiosa, há um argumento muito comum, amplamente mobilizado, que passa pela ideia de que o problema é a falta de educação, entretanto: “No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 71). Afinal, todas as teorias mencionadas anteriormente faziam parte do programa educacional religioso e laico. É nítido que a educação que defendemos é distinta desses modelos conservadores e opressores, que a escrita é um importante campo de disputas da luta antirracista, que precisamos elaborar e difundir outras narrativas e versões da história e impulsionar letramento racial, mas esse debate precisa ir além: “pois é preciso discutir a escravidão e o racismo sob o prisma da economia política” (ALMEIDA, 2019, p.182). | ||
o racismo não é um resto da escravidão, até mesmo porque não há oposição entre modernidade/capitalismo e escravidão. A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como desassociar um do outro (ALMEIDA, 2019, p. 183). | Além disso,o racismo não é um resto da escravidão, até mesmo porque não há oposição entre modernidade/capitalismo e escravidão. A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como desassociar um do outro (ALMEIDA, 2019, p. 183). | ||
Assim, quando nos debruçamos sobre as construções históricas de formação da sociedade brasileira, é perceptível que o racismo é um dos fios condutores para que possamos compreender as articulações e as ações de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Existem alguns conceitos que vêm norteando os debates sobre os casos de violência religiosa a terreiros: intolerância religiosa, racismo religioso, terrorismo e fundamentalismo. Concentrar-me-ei aqui no que me parece ser mais condizente com as dinâmicas observadas, os dois primeiros, uma vez que os termos “racismo religioso” e “intolerância religiosa” estão intimamente entrelaçados dentro dos contextos social e político aos quais são vinculados. A classificação dos atos de violência religiosa como “intolerância religiosa” ou “racismo religioso” alimentam mudanças significativas nas metodologias e nas epistemologias de análises dentro e fora dos espaços acadêmicos. | Assim, quando nos debruçamos sobre as construções históricas de formação da sociedade brasileira, é perceptível que o racismo é um dos fios condutores para que possamos compreender as articulações e as ações de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Existem alguns conceitos que vêm norteando os debates sobre os casos de violência religiosa a terreiros: intolerância religiosa, racismo religioso, terrorismo e fundamentalismo. Concentrar-me-ei aqui no que me parece ser mais condizente com as dinâmicas observadas, os dois primeiros, uma vez que os termos “racismo religioso” e “intolerância religiosa” estão intimamente entrelaçados dentro dos contextos social e político aos quais são vinculados. A classificação dos atos de violência religiosa como “intolerância religiosa” ou “racismo religioso” alimentam mudanças significativas nas metodologias e nas epistemologias de análises dentro e fora dos espaços acadêmicos. | ||
==Intolerância religiosa e racismo religioso == | |||
Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos, conforme se observa:<blockquote>Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (BRASIL, 1988, n. p.).</blockquote>Por sua vez, o uso do termo “racismo religioso” e suas implicações epistemológicas, apesar de defendido por algumas/alguns autoras/es, ainda está em construção. De forma geral, o termo “racismo religioso” tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. Grada Kilomba destaca que “o racismo, por sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídias, emprego, educação, habitação, saúde [...]” (KILOMBA, 2019a, p. 76). Para alguns, contudo, esse termo é limitado, pois enfatiza o condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Nesse caso caberia o questionamento: como dizer que uma pessoa não negra, adepta das religiosidades afro-brasileiras, sofre “racismo religioso”, uma vez que as práticas de racismo estão ligadas às estruturas de poder, dimensões políticas e sociais? | Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos, conforme se observa:<blockquote>Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (BRASIL, 1988, n. p.).</blockquote>Por sua vez, o uso do termo “racismo religioso” e suas implicações epistemológicas, apesar de defendido por algumas/alguns autoras/es, ainda está em construção. De forma geral, o termo “racismo religioso” tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. Grada Kilomba destaca que “o racismo, por sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídias, emprego, educação, habitação, saúde [...]” (KILOMBA, 2019a, p. 76). Para alguns, contudo, esse termo é limitado, pois enfatiza o condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Nesse caso caberia o questionamento: como dizer que uma pessoa não negra, adepta das religiosidades afro-brasileiras, sofre “racismo religioso”, uma vez que as práticas de racismo estão ligadas às estruturas de poder, dimensões políticas e sociais? | ||
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Alivia-me quando o mestre Antônio Bispo dos Santos diz que <blockquote>[...] trabalho com a imagem de quem venceu. Mesmo que queimem a escrita, não queimam a oralidade, mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados, mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade. Porque as nossas imagens também são ancestrais [...] E o que é contracolonizar? É reeditar as nossas trajetórias a partir das nossas matrizes. E quem é capaz de fazer isso? Nós mesmos! (SANTOS, 2018, n.p.). </blockquote>O historiador Brian Levack (1988) observou uma ligação explícita entre o medo da rebelião e a crença culta na bruxaria organizada nos séculos XV-XVII na Europa. A bruxa, para essas sociedades, representou uma essência de rebeldia, pois, como adoradora do Diabo, ela também fez parte de uma conspiração política contra o Reino de Deus, praticando, assim, uma traição sem perdão. Quando apontamos um dedo para alguém, outros três se viram para nós. Quanto mais repressão, mais medo, mais reação, não necessariamente nessa ordem. Não só os ataques constantes em toda a história do Brasil geraram uma organização do povo de terreiro, em resistência à ofensiva, mas também o próprio crescimento do caráter político do terreiro e seu engajamento em lutas coletivas causou/causa uma maior opressão. Esses movimentos acontecem simultaneamente, de forma espiralar, do período colonial até os dias de hoje. | Alivia-me quando o mestre Antônio Bispo dos Santos diz que <blockquote>[...] trabalho com a imagem de quem venceu. Mesmo que queimem a escrita, não queimam a oralidade, mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados, mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade. Porque as nossas imagens também são ancestrais [...] E o que é contracolonizar? É reeditar as nossas trajetórias a partir das nossas matrizes. E quem é capaz de fazer isso? Nós mesmos! (SANTOS, 2018, n.p.). </blockquote>O historiador Brian Levack (1988) observou uma ligação explícita entre o medo da rebelião e a crença culta na bruxaria organizada nos séculos XV-XVII na Europa. A bruxa, para essas sociedades, representou uma essência de rebeldia, pois, como adoradora do Diabo, ela também fez parte de uma conspiração política contra o Reino de Deus, praticando, assim, uma traição sem perdão. Quando apontamos um dedo para alguém, outros três se viram para nós. Quanto mais repressão, mais medo, mais reação, não necessariamente nessa ordem. Não só os ataques constantes em toda a história do Brasil geraram uma organização do povo de terreiro, em resistência à ofensiva, mas também o próprio crescimento do caráter político do terreiro e seu engajamento em lutas coletivas causou/causa uma maior opressão. Esses movimentos acontecem simultaneamente, de forma espiralar, do período colonial até os dias de hoje. | ||
== Referências == | |||
ADICHIE, C. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. | ADICHIE, C. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. | ||
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VAZ, L. S. Racismo religioso no Brasil: um velho baú e suas novas vestes. Migalhas, [s. l.], jan. 2021. Olhares interseccionais. Disponível em: <nowiki>https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil--um-velho-bau-e-suas-novas-vestes</nowiki>. Acesso em: 20 ju. 2021. | VAZ, L. S. Racismo religioso no Brasil: um velho baú e suas novas vestes. Migalhas, [s. l.], jan. 2021. Olhares interseccionais. Disponível em: <nowiki>https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil--um-velho-bau-e-suas-novas-vestes</nowiki>. Acesso em: 20 ju. 2021. | ||
== Ver também == | |||
[[Qual o papel das instituições públicas na superação do racismo religioso? (artigo)]] | *[[Qual o papel das instituições públicas na superação do racismo religioso? (artigo)]] | ||
*[[Racismo, motor da violência (relatório)]] | |||
*[[Drogas e religião nas favelas]] | |||
[[Categoria:Temática - Religião]] | [[Categoria:Temática - Religião]] | ||
[[Categoria:Racismo]] | [[Categoria:Racismo]] | ||
[[Categoria:Intolerância religiosa]] | [[Categoria:Intolerância religiosa]] |