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O artigo "Escutemos Marielle" foi escrito por Marielle Franco e apresenta reflexões sobre sua atuação política e as disputas narrativas em torno de seu legado após sua execução. Destaca a importância de ouvir as falas de Marielle e reconhecer as diversas dimensões de sua luta, especialmente em relação às mulheres negras e faveladas. O texto ressalta a necessidade de perpetuar o processo de luta no qual Marielle estava inserida, buscando interpretações que contribuam para avanços políticos e sociais. | O artigo "Escutemos Marielle" foi escrito por [[Marielle Franco]] e apresenta reflexões sobre sua atuação política e as disputas narrativas em torno de seu legado após sua execução. Destaca a importância de ouvir as falas de Marielle e reconhecer as diversas dimensões de sua luta, especialmente em relação às mulheres negras e faveladas. O texto ressalta a necessidade de perpetuar o processo de luta no qual Marielle estava inserida, buscando interpretações que contribuam para avanços políticos e sociais. | ||
Autoria: Marielle Franco (com introdução de Daniel Guimarães). | Autoria: Marielle Franco (com introdução de Daniel Guimarães). | ||
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=='''Introdução'''== | =='''Introdução'''== | ||
''Ainda sinto um baque e uma tristeza ao pensar em Marielle, mesmo após duas semanas de sua execução. Escuto com frequência os efeitos desse assassinato nas falas das e dos pacientes que recebo na Clínica Pública de Psicanálise, mas também no consultório não-público. Marielle se fez presente para sempre e sinto saudade do futuro quando penso nela. Saudade das lembranças que temos do futuro, formulação do histórico babalaô [https://pt.wikipedia.org/wiki/Agenor_Miranda Agenor Miranda Rocha] ' | ''Ainda sinto um baque e uma tristeza ao pensar em [[Marielle Franco|Marielle]], mesmo após duas semanas de sua execução. Escuto com frequência os efeitos desse assassinato nas falas das e dos pacientes que recebo na Clínica Pública de Psicanálise, mas também no consultório não-público. Marielle se fez presente para sempre e sinto saudade do futuro quando penso nela. Saudade das lembranças que temos do futuro, formulação do histórico babalaô [https://pt.wikipedia.org/wiki/Agenor_Miranda Agenor Miranda Rocha] ''''sobre o desejo. Marielle seria cada vez mais, no nosso jargão esquisito de esquerda, um grande quadro. Um perigo mesmo, para as forças conservadoras e para o mercado que dirige o Estado brasileiro.''''' | ||
''Desde então, uma série de disputas narrativas entraram de canela para controlar os destinos do grande afeto social que reverberou a partir de Marielle. A direita mais inteligente e com um projeto de sociedade lançou mão de táticas semelhantes às de junho de 2013. Esvaziar o conteúdo da luta de Marielle, ao ponto de instrumentalizá-la a favor do que Marielle era contra, a favor das forças que anteciparam os gatilhos da arma que a matou. Entre o amplo campo da esquerda uma série de vetores também entrou em ação para reivindicar a legitimidade de definir os motivos pelos quais ela teve sua vida interrompida e reputação atacada.'' | ''Desde então, uma série de disputas narrativas entraram de canela para controlar os destinos do grande afeto social que reverberou a partir de [[Marielle Franco|Marielle]]. A direita mais inteligente e com um projeto de sociedade lançou mão de táticas semelhantes às de junho de 2013. Esvaziar o conteúdo da luta de Marielle, ao ponto de instrumentalizá-la a favor do que Marielle era contra, a favor das forças que anteciparam os gatilhos da arma que a matou. Entre o amplo campo da esquerda uma série de vetores também entrou em ação para reivindicar a legitimidade de definir os motivos pelos quais ela teve sua vida interrompida e reputação atacada.'' | ||
''Pensamos então em postar na [https://www.facebook.com/clinicapublicadepsicanalise/ página] da Clínica Pública de Psicanálise vídeos e textos com falas dela. Ela falando sobre si, sobre o que fazia, sobre o que pensava. Atribuir a ela sua própria fala, nesse momento que, por muitos motivos, tendemos a manter apenas sua imagem e falar por sobre ela, em nome dela. Uma parte significativa dessas falas vêm do artigo “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada”, do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, da editora Zouk, agora publicado aqui no Outras Palavras.'' | ''Pensamos então em postar na [https://www.facebook.com/clinicapublicadepsicanalise/ página] da Clínica Pública de Psicanálise vídeos e textos com falas dela. Ela falando sobre si, sobre o que fazia, sobre o que pensava. Atribuir a ela sua própria fala, nesse momento que, por muitos motivos, tendemos a manter apenas sua imagem e falar por sobre ela, em nome dela. Uma parte significativa dessas falas vêm do artigo “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada”, do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, da editora Zouk, agora publicado aqui no Outras Palavras.'' | ||
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De um lado, são as que vivem maiores consequências do impacto do poder dominante, principalmente na formação social brasileira, mas são também as que produzem meios que alteram condições de vida para ampliação da mobilidade em todas as suas dimensões. Nesse sentido, elas serão as mais penalizadas nesse contexto atual de um golpe de Estado, ao mesmo tempo que ocupam centralidade como personagens na ação para superação das condições impostas. | De um lado, são as que vivem maiores consequências do impacto do poder dominante, principalmente na formação social brasileira, mas são também as que produzem meios que alteram condições de vida para ampliação da mobilidade em todas as suas dimensões. Nesse sentido, elas serão as mais penalizadas nesse contexto atual de um golpe de Estado, ao mesmo tempo que ocupam centralidade como personagens na ação para superação das condições impostas. | ||
Registra-se que o termo sobrevivência aqui utilizado vai além da manutenção da vida, mesmo frente à grande onda de feminicídio existente, no ano de 2015, por exemplo, em que 65,3% das mulheres assassinadas eram negras. Ou seja, a sobrevivência aqui apresentada diz respeito também às condições de morar, alimentar-se, viver com saúde, vestir-se, ter acesso às escolas, condições de trabalho, mobilidade corporal e condições de acesso a diversões e artes. Sobreviver, portanto, ultrapassa qualquer visão economicista do termo e alcança as múltiplas dimensões da vida. Cabe ressaltar, portanto, dois elementos que devem percorrer toda essa reflexão: a) os corpos das periferias ocupam o lugar principal de representação da exploração, da interdição e do controle imposto pela ordem capitalista no processo de produção, substituindo assim o que antes chamava-se de “corpo da fábrica”; b) nesse contexto, as mulheres, negras, das periferias, com ênfase nas favelas, são representações estratégicas para avanços democráticos e de convivência com as diferenças e superação das desigualdades, por conta do peso do machismo e do racismo e do crescimento da ideologia xenofóbica. | Registra-se que o termo sobrevivência aqui utilizado vai além da manutenção da vida, mesmo frente à grande onda de feminicídio existente, no ano de 2015, por exemplo, em que 65,3% das mulheres assassinadas eram negras. Ou seja, a sobrevivência aqui apresentada diz respeito também às condições de morar, alimentar-se, viver com saúde, vestir-se, ter acesso às escolas, condições de trabalho, mobilidade corporal e condições de acesso a diversões e artes. Sobreviver, portanto, ultrapassa qualquer visão economicista do termo e alcança as múltiplas dimensões da vida. Cabe ressaltar, portanto, dois elementos que devem percorrer toda essa reflexão: a) os corpos das periferias ocupam o lugar principal de representação da exploração, da interdição e do controle imposto pela ordem capitalista no processo de produção, substituindo assim o que antes chamava-se de “corpo da fábrica”; b) nesse contexto, as mulheres, negras, das periferias, com ênfase nas favelas, são representações estratégicas para avanços democráticos e de convivência com as diferenças e superação das desigualdades, por conta do peso do machismo e do [[Racismo, motor da violência (relatório)|racismo]] e do crescimento da ideologia xenofóbica. | ||
As mulheres negras, moradoras das periferias e favelas, são ativas nos cenários políticos, culturais e artísticos da cidade. Ainda que a luta/ativismo/militância por elas protagonizada seja inicialmente relacionada às questões locais e intimamente “linkada” às condições objetivas e subjetivas das suas vidas no território, conquistam dimensões fundamentais para avançar as condições locais, alcançando impacto em toda a cidade. Nesse sentido, há várias mulheres faveladas que se destacam e ultrapassam, em ações e representações, o ambiente que predominam em suas vidas. Tal fenômeno, por sua vez, não é determinado por questões estritamente individuais, por serem iluminadas ou especiais, mas por uma questão de trajetórias, encontros, percepções de si, do outro, oportunidades, articulação e inserção nas questões sociais. E, com ênfase afirmativa, tal fenômeno, que se encontrava em ascensão no momento pré-golpe, traz, para a esquerda, o desafio de manter esse crescimento para superar a onda conservadora que predomina hoje no País. | As mulheres negras, moradoras das periferias e favelas, são ativas nos cenários políticos, culturais e artísticos da cidade. Ainda que a luta/ativismo/militância por elas protagonizada seja inicialmente relacionada às questões locais e intimamente “linkada” às condições objetivas e subjetivas das suas vidas no território, conquistam dimensões fundamentais para avançar as condições locais, alcançando impacto em toda a cidade. Nesse sentido, há várias mulheres faveladas que se destacam e ultrapassam, em ações e representações, o ambiente que predominam em suas vidas. Tal fenômeno, por sua vez, não é determinado por questões estritamente individuais, por serem iluminadas ou especiais, mas por uma questão de trajetórias, encontros, percepções de si, do outro, oportunidades, articulação e inserção nas questões sociais. E, com ênfase afirmativa, tal fenômeno, que se encontrava em ascensão no momento pré-golpe, traz, para a esquerda, o desafio de manter esse crescimento para superar a onda conservadora que predomina hoje no País. |
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