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Autoria: Carolina Rocha. | |||
<blockquote>Os brancos evangélicos estão sempre atrás do diabo, e quem é o diabo? Ele é um espírito que está sempre em um negro. A caça ao diabo começa a eliminar aos poucos a cultura e memória coletiva (Paulina Chiziane)</blockquote>Desde o jardim de infância, eu aprendi que anjinhos são loirinhos e diabinhos são pretinhos, minha professora fazia, inclusive, chifrinhos com o cabelo crespo do Josué, meu coleguinha. Não o chamava de preto, mas o menino já havia sido um macaquinho simpático no Dia do Meio Ambiente e o saci na Festa do Folclore. Eu gostaria que essa fosse apenas a minha história, mas é a de tantas outras pessoas negras neste país. Gostaria de ter lido ainda pequena a obra da escritora Sonya Silva, somada a tantas outras escritoras da literatura afro-brasileira, que, preocupada com as narrativas construídas para crianças negras, criou uma história com um anjo de chocolate<ref>Existe um documentário incrível contando a história da escritora, que faz o debate sobre representatividade nas histórias infantis, chamado “Anjo de Chocolate”, do cineasta Clementino Junior. </ref>. Mas eu só a conheci já com 30 anos. | |||
Vivemos em um país majoritariamente cristão. Existem símbolos que exteriorizam essa fé nas mais diversas instituições públicas. O nosso próprio modelo educacional é herdeiro dessa lógica. Sem dúvida, as diversas religiões que professam fé em Cristo não formam um bloco coeso; existem, diferenças importantes entre os grupos, inclusive dentro do mesmo segmento. Entretanto, acreditar e defender a doutrina cristã é, historicamente, no Brasil, muito mais palatável e aceitável do que pertencer às diversas denominações minoritárias que defendem crenças fora desse sistema, que se impôs de forma proselitista e bélica em diversos territórios no mundo, em detrimento, inclusive, de culturas milenares. | Vivemos em um país majoritariamente cristão. Existem símbolos que exteriorizam essa fé nas mais diversas instituições públicas. O nosso próprio modelo educacional é herdeiro dessa lógica. Sem dúvida, as diversas religiões que professam fé em Cristo não formam um bloco coeso; existem, diferenças importantes entre os grupos, inclusive dentro do mesmo segmento. Entretanto, acreditar e defender a doutrina cristã é, historicamente, no Brasil, muito mais palatável e aceitável do que pertencer às diversas denominações minoritárias que defendem crenças fora desse sistema, que se impôs de forma proselitista e bélica em diversos territórios no mundo, em detrimento, inclusive, de culturas milenares. | ||
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Assim, quando nos debruçamos sobre as construções históricas de formação da sociedade brasileira, é perceptível que o racismo é um dos fios condutores para que possamos compreender as articulações e as ações de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Existem alguns conceitos que vêm norteando os debates sobre os casos de violência religiosa a terreiros: intolerância religiosa, racismo religioso, terrorismo e fundamentalismo. Concentrar-me-ei aqui no que me parece ser mais condizente com as dinâmicas observadas, os dois primeiros, uma vez que os termos “racismo religioso” e “intolerância religiosa” estão intimamente entrelaçados dentro dos contextos social e político aos quais são vinculados. A classificação dos atos de violência religiosa como “intolerância religiosa” ou “racismo religioso” alimentam mudanças significativas nas metodologias e nas epistemologias de análises dentro e fora dos espaços acadêmicos. | Assim, quando nos debruçamos sobre as construções históricas de formação da sociedade brasileira, é perceptível que o racismo é um dos fios condutores para que possamos compreender as articulações e as ações de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Existem alguns conceitos que vêm norteando os debates sobre os casos de violência religiosa a terreiros: intolerância religiosa, racismo religioso, terrorismo e fundamentalismo. Concentrar-me-ei aqui no que me parece ser mais condizente com as dinâmicas observadas, os dois primeiros, uma vez que os termos “racismo religioso” e “intolerância religiosa” estão intimamente entrelaçados dentro dos contextos social e político aos quais são vinculados. A classificação dos atos de violência religiosa como “intolerância religiosa” ou “racismo religioso” alimentam mudanças significativas nas metodologias e nas epistemologias de análises dentro e fora dos espaços acadêmicos. | ||
=== Intolerância religiosa e racismo religioso === | |||
Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos, conforme se observa:<blockquote>Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (BRASIL, 1988, n. p.).</blockquote>Por sua vez, o uso do termo “racismo religioso” e suas implicações epistemológicas, apesar de defendido por algumas/alguns autoras/es, ainda está em construção. De forma geral, o termo “racismo religioso” tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. Grada Kilomba destaca que “o racismo, por sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídias, emprego, educação, habitação, saúde [...]” (KILOMBA, 2019a, p. 76). Para alguns, contudo, esse termo é limitado, pois enfatiza o condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Nesse caso caberia o questionamento: como dizer que uma pessoa não negra, adepta das religiosidades afro-brasileiras, sofre “racismo religioso”, uma vez que as práticas de racismo estão ligadas às estruturas de poder, dimensões políticas e sociais? | Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos, conforme se observa:<blockquote>Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (BRASIL, 1988, n. p.).</blockquote>Por sua vez, o uso do termo “racismo religioso” e suas implicações epistemológicas, apesar de defendido por algumas/alguns autoras/es, ainda está em construção. De forma geral, o termo “racismo religioso” tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. Grada Kilomba destaca que “o racismo, por sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídias, emprego, educação, habitação, saúde [...]” (KILOMBA, 2019a, p. 76). Para alguns, contudo, esse termo é limitado, pois enfatiza o condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Nesse caso caberia o questionamento: como dizer que uma pessoa não negra, adepta das religiosidades afro-brasileiras, sofre “racismo religioso”, uma vez que as práticas de racismo estão ligadas às estruturas de poder, dimensões políticas e sociais? | ||
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Silvio Almeida nos lembra que a metáfora da guerra é uma produção colonial e dos estados escravistas, que instauram uma nova configuração do terror nas dinâmicas humanas que a norma jurídica não alcança. É o que o filósofo Achille Mbembe (2018) chama de necropolítica, ou seja, uma política de morte nas tecnologias de controle social: <blockquote>a peculiaridade do terror colonial é que ele não se dá diante de uma ameaça concreta ou de uma guerra declarada; a guerra tem regras; na guerra há limites. Mas e na ameaça da guerra? Qual o limite a ser observado em situações de emergência, em que sei que estou perto da guerra e que meu inimigo está próximo? Não seria um dever atacar primeiro para preservar a vida dos meus semelhantes e manter a “paz”? É nesse espaço de dúvida, paranoia, loucura que o modelo colonial de terror se impõe. (ALMEIDA, 2019, p. 119-120).</blockquote> | Silvio Almeida nos lembra que a metáfora da guerra é uma produção colonial e dos estados escravistas, que instauram uma nova configuração do terror nas dinâmicas humanas que a norma jurídica não alcança. É o que o filósofo Achille Mbembe (2018) chama de necropolítica, ou seja, uma política de morte nas tecnologias de controle social: <blockquote>a peculiaridade do terror colonial é que ele não se dá diante de uma ameaça concreta ou de uma guerra declarada; a guerra tem regras; na guerra há limites. Mas e na ameaça da guerra? Qual o limite a ser observado em situações de emergência, em que sei que estou perto da guerra e que meu inimigo está próximo? Não seria um dever atacar primeiro para preservar a vida dos meus semelhantes e manter a “paz”? É nesse espaço de dúvida, paranoia, loucura que o modelo colonial de terror se impõe. (ALMEIDA, 2019, p. 119-120).</blockquote> | ||
=== Qual o papel das instituições públicas na superação deste tipo de racismo? === | |||
O racismo religioso está presente na omissão das autoridades públicas em dar respostas à grande parte das cobranças feitas acerca dos casos de violência a terreiros, na morosidade em suas tratativas com a população negra e de axé do país e no desinteresse em fazer um debate amplo e qualificado para a construção de políticas públicas assertivas. Além de ocultarem que o protagonismo da barbárie, do racismo e da intolerância está, muitas vezes, em suas próprias mãos, seja por meio dos agentes de segurança pública, que não se furtam em invadir/ameaçar terreiros há décadas no país; do sistema judiciário, que ainda discute a permissão para a imolação de animais nas “casas de santo”, mas pouco faz para deter um genocídio da juventude negra em curso e, ainda é capaz de tentar tirar a guarda de crianças de suas mães, por escolherem iniciarem suas/seus filhos. | O racismo religioso está presente na omissão das autoridades públicas em dar respostas à grande parte das cobranças feitas acerca dos casos de violência a terreiros, na morosidade em suas tratativas com a população negra e de axé do país e no desinteresse em fazer um debate amplo e qualificado para a construção de políticas públicas assertivas. Além de ocultarem que o protagonismo da barbárie, do racismo e da intolerância está, muitas vezes, em suas próprias mãos, seja por meio dos agentes de segurança pública, que não se furtam em invadir/ameaçar terreiros há décadas no país; do sistema judiciário, que ainda discute a permissão para a imolação de animais nas “casas de santo”, mas pouco faz para deter um genocídio da juventude negra em curso e, ainda é capaz de tentar tirar a guarda de crianças de suas mães, por escolherem iniciarem suas/seus filhos. | ||
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VAZ, L. S. Racismo religioso no Brasil: um velho baú e suas novas vestes. Migalhas, [s. l.], jan. 2021. Olhares interseccionais. Disponível em: <nowiki>https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil--um-velho-bau-e-suas-novas-vestes</nowiki>. Acesso em: 20 ju. 2021. | VAZ, L. S. Racismo religioso no Brasil: um velho baú e suas novas vestes. Migalhas, [s. l.], jan. 2021. Olhares interseccionais. Disponível em: <nowiki>https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil--um-velho-bau-e-suas-novas-vestes</nowiki>. Acesso em: 20 ju. 2021. | ||
=== Ver também === | |||
[[Racismo Eclesiástico (depoimento)]] | |||
[[Qual o papel das instituições públicas na superação do racismo religioso? (artigo)]] | |||
[[Racismo, motor da violência (relatório)]] | |||
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[[Categoria:Racismo]] | [[Categoria:Racismo]] | ||
[[Categoria:Intolerância Religiosa]] | [[Categoria:Intolerância Religiosa]] |