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== Quem investiga o Exército e as Polícias? == | == Quem investiga o Exército e as Polícias? == | ||
<div style="text-align: justify;">Diante do aumento de chacinas, de desaparecimento forçado, de operações e dos casos de auto de resistência, grupos que formam o movimento de favelas, junto às Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União e da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, organizaram em 2018 uma agenda de visitas em mais de 40 favelas e periferias de todo o Rio de Janeiro que recebe o nome de ''Circuito Favelas por direitos: Intervenção Não! ''O objetivo foi colher depoimentos, ouvir moradores e moradoras, saber quais os tipos de violações as favelas e periferias sofreram e passaram a sofrer neste momento, partindo do entendimento de que estas são as que mais afetadas com a militarização.<br/> Foram realizadas mais de dez visitas, nas quais depoimentos de moradores foram colhidos e dão conta de aumento de invasões dentro das casas, roubos de dinheiro e de objetos, pessoas desaparecidas, chacinas, revistas vexatórias, principalmente de jovens negros, além do número de casos que aparecem como auto de resistência. Em apenas uma favela da Zona Oeste do Rio, em uma semana de operação com uso de blindados terrestres, aéreos e policiais militares e civis, além de tanques de guerra, 22 pessoas foram assassinadas, sendo que apenas seis corpos apareceram, todos registrados como casos de auto de resistência. Os demais se encontram desaparecidos. A situação se repete em outras favelas e periferias.<br/> Neste cenário, o relançamento da ''Campanha Caveirão Não'' também trabalhou para dar visibilidade e pressionar o judiciário nas investigações dos casos. Segundo dados veiculados pelos integrantes da campanha, o número de homicídios decorrentes de intervenção policial no estado do Rio teve um aumento de 96,7% no mês de março de 2017, em comparação com o mesmo período de 2016, passando de 61 para 120 vítimas. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, foram mais de 813 mortos pelas polícias do Estado de janeiro a setembro de 2018, em homicídios em que a polícia alega ter agido em suposta legítima defesa. Outro dado que chama atenção é que a Baixada Fluminense concentra 46% dos homicídios de todo o estado. “''Mais de 90% dos autos de resistências, quando conseguimos levar a julgamento, são arquivados por esse judiciário, mesmo com provas periciais comprovando tiros pelas costas. A vítima passa a ser acusada a partir de uma pergunta racista que boa parte dos juízes e juízas fazem nos julgamentos às mães e familiares vítimas do Estado: se o fi lho tinha algum tipo de convivência com o tráfi co. Com essa indagação fazem com que a vítima passe a ser vista como o violador. O julgamento era da violação da polícia, e não se aquele menino tinha ou não relação com o tráfico, até porque, todos nós que moramos em favelas convivemos com o tráfico''”, explica Fransérgio.<br/> O ativista e pesquisador conta que a Campanha organizou atos em frente ao Ministério Público para denunciar isso e outras ações racistas do judiciário. Com esses atos e a partir do protagonismo das mães e familiares da violência do Estado, houve uma abertura com o Ministério Público — por meio do Grupo de Atuação Especial da Execução Penal e da assessoria de Direitos Humanos do MP — que resultou no desarquivamento de alguns processos que estavam parados. “P''recisamos entender que há um sistema de segurança racista, onde como as mães e familiares dizem: A polícia é a ponta e aperta o gatilho e o judiciário racista absolve esse executor''”, conclui.</div> | <div style="text-align: justify;">Diante do aumento de chacinas, de desaparecimento forçado, de operações e dos casos de auto de resistência, grupos que formam o movimento de favelas, junto às Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União e da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, organizaram em 2018 uma agenda de visitas em mais de 40 favelas e periferias de todo o Rio de Janeiro que recebe o nome de ''Circuito Favelas por direitos: Intervenção Não! ''O objetivo foi colher depoimentos, ouvir moradores e moradoras, saber quais os tipos de violações as favelas e periferias sofreram e passaram a sofrer neste momento, partindo do entendimento de que estas são as que mais afetadas com a militarização.<br/> Foram realizadas mais de dez visitas, nas quais depoimentos de moradores foram colhidos e dão conta de aumento de invasões dentro das casas, roubos de dinheiro e de objetos, pessoas desaparecidas, chacinas, revistas vexatórias, principalmente de jovens negros, além do número de casos que aparecem como auto de resistência. Em apenas uma favela da Zona Oeste do Rio, em uma semana de operação com uso de blindados terrestres, aéreos e policiais militares e civis, além de tanques de guerra, 22 pessoas foram assassinadas, sendo que apenas seis corpos apareceram, todos registrados como casos de auto de resistência. Os demais se encontram desaparecidos. A situação se repete em outras favelas e periferias.<br/> Neste cenário, o relançamento da ''Campanha Caveirão Não'' também trabalhou para dar visibilidade e pressionar o judiciário nas investigações dos casos. Segundo dados veiculados pelos integrantes da campanha, o número de homicídios decorrentes de intervenção policial no estado do Rio teve um aumento de 96,7% no mês de março de 2017, em comparação com o mesmo período de 2016, passando de 61 para 120 vítimas. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, foram mais de 813 mortos pelas polícias do Estado de janeiro a setembro de 2018, em homicídios em que a polícia alega ter agido em suposta legítima defesa. Outro dado que chama atenção é que a Baixada Fluminense concentra 46% dos homicídios de todo o estado. “''Mais de 90% dos autos de resistências, quando conseguimos levar a julgamento, são arquivados por esse judiciário, mesmo com provas periciais comprovando tiros pelas costas. A vítima passa a ser acusada a partir de uma pergunta racista que boa parte dos juízes e juízas fazem nos julgamentos às mães e familiares vítimas do Estado: se o fi lho tinha algum tipo de convivência com o tráfi co. Com essa indagação fazem com que a vítima passe a ser vista como o violador. O julgamento era da violação da polícia, e não se aquele menino tinha ou não relação com o tráfico, até porque, todos nós que moramos em favelas convivemos com o tráfico''”, explica Fransérgio.<br/> O ativista e pesquisador conta que a Campanha organizou atos em frente ao Ministério Público para denunciar isso e outras ações racistas do judiciário. Com esses atos e a partir do protagonismo das mães e familiares da violência do Estado, houve uma abertura com o Ministério Público — por meio do Grupo de Atuação Especial da Execução Penal e da assessoria de Direitos Humanos do MP — que resultou no desarquivamento de alguns processos que estavam parados. “P''recisamos entender que há um sistema de segurança racista, onde como as mães e familiares dizem: A polícia é a ponta e aperta o gatilho e o judiciário racista absolve esse executor''”, conclui.</div> | ||
== Auto de resistência: os casos aumentam, as investigações diminuem == | |||
<p style="text-align: justify;">Historicamente, as favelas e periferias do Rio de Janeiro enfrentam violações cometidas pelos órgãos do Estado, principalmente no que se refere ao tema da segurança pública. Neste espaço empobrecido, tendo em sua maioria uma população negra, a ordem para matar é legitimada pelos próprios governantes a partir de um falso discurso de guerra às drogas.<br/> Um exemplo de como funciona a criminalização da pobreza e o racismo para o espaço favelado é quando, nos anos de 1990, os policiais passaram a receber a chamada “''gratificação faroeste''”. Foi então que ganhou destaque o dispositivo legal conhecido como “auto de resistência”. Presente desde a época da ditadura militar, tal classificação administrativa passou progressivamente a ser empregada para designar as mortes resultantes das ações policiais e, durante o governo Marcelo Alencar, seu uso chegou a ser estimulado por uma remuneração concedida a policiais militares intitulada “''premiação por bravura''” ou “''gratificação faroeste''”. O “''auto de resistência''” foi criado em 1969, após o AI-5 (dezembro de 1968), como medida interna da própria polícia, a fim de justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio. Imediatamente, passou a ser usada pela imprensa naturalizando as versões dos militares e da polícia para os “teatrinhos” (como os próprios diziam à época) com que justificavam os assassinatos de presos políticos na tortura: às vezes, também explicados como “excessos” de tratamento ou “suicídio”, como explica João Costa, do ''Grupo Tortura Nunca Mais''.<br/> Para Patrícia Oliveira, integrante do ''Mecanismo de Combate à Tortura do Rio de Janeiro'',esse instrumento levou à criação de grupos de extermínio e ao aumento vertiginoso do número de chacinas. ''“Naquela época, os policiais que mais matavam ganhavam mais. Recebiam um bônus que ficou conhecido como a “'gratificação faroeste'”, o que fez aumentar muito o número de pessoas assassinadas. Surgiram vários casos de crianças e adolescentes assassinados. Eram constantes as operações em favelas. Surgiram vários grupos de extermínios. Os ‘Cavalos Corredores’<ref>O Cavalos Corredores, a que se refere Patrícia, foi um grupo de extermínio formado por policiais militares do 9° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Eles foram responsáveis pela Chacina de Vigário Geral, em 1993, que vitimou 21 pessoas.</ref>, por exemplo, era um deles. É daí que surgem as várias chacinas no Rio de Janeiro. A polícia mostrou a sua cara naquele momento''”, conta. Em 2008, foram implementadas, em algumas favelas do Rio de Janeiro, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que estiveram por 10 anos em 38 favelas. Estudiosos sobre o tema afirmam que nos primeiros anos de UPP houve uma diminuição nos casos de auto de resistência dentro destas favelas, mas que aumentou o número de desaparecimentos, segundo dados do relatório Auto de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do rio de janeiro (2001–2011), coordenado pelo Prof. Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paralelo à implantação das UPPs, a partir de 2009, a Secretaria de Segurança Pública criou um programa de metas para a redução de alguns indicadores da violência, incluindo homicídios dolosos.<br/> A partir do começo de 2011, este programa passou a contar com metas para a redução da letalidade violenta, passando a incluir não só os homicídios dolosos e latrocínios — contemplados no decreto inicial –, mas também lesões corporais seguidas de morte e auto de resistência. Tal situação demonstra o reconhecimento do governo da existência de excessos no emprego deste dispositivo.<br/> Para a secretaria de segurança pública, assim como para alguns estudiosos da segurança e de organizações sociais, a implementação das UPPs nas favelas e periferias foi uma forma de combate ao tráfico de drogas. Ao contrário, familiares e moradores de favelas afirmam que esta política representou mais uma forma de controle da população negra e pobre. Juliana Farias, pesquisadora sobre o tema e apoiadora do movimento de mães de vítimas da violência policial, afi rma que esta é, sem dúvida, mais uma prática racista dos poderes estatais: “''A política de segurança pública é racista; o funcionamento da burocracia estatal também se faz através de uma racionalidade racista. Não é possível falar em diminuição dos auto de resistência enquanto ainda acreditarem que existe um inimigo a ser combatido (lembrando que nessa lógica racista esse inimigo é necessariamente o homem negro morador de favelas e periferias)''”, conclui. </p> | |||
= 2ª reportagem: Sem chance de crescer: "auto de resistência" e a infância perdida = | |||
<p style="text-align: justify;">A extrema direita chegou ao poder em 2019 e os primeiros meses já mostraram que este e provavelmente os próximos anos não serão fáceis para quem vive e sobrevive nas favelas e periferias brasileiras. Recordemos: Jair Bolsonaro ganhou as eleições presidenciais “fazendo arminha” e, no Rio, o atual governador, Wilson Witzel antes mesmo de se eleger já assumia posturas abertamente racistas, pró-militarização e elitistas. Não por acaso, somente entre janeiro e abril, o Rio chegou a ter o maior número de casos de auto de resistência dos últimos 20: foram mais de 400.<br/> As crianças e adolescentes das favelas, assim como outros de qualquer parte das cidades do país, deveriam ter direito à infância: a estudar, brincar na rua, comprar doce, jogar futebol e soltar pipa. Mas, a julgar pela permissão deliberada do uso irresponsável da força nestes territórios ou pela passividade histórica dos governos diante da violência contra estes cidadãos e cidadãs em fase de formação, os governantes de hoje e de ontem devem pensar que crianças e adolescentes negros moradores de periferias podem ser mortos. Como se com eles não morressem também sonhos seus e de suas famílias.<br/> Dados do Dossiê Criança e Adolescente, do Instituto de Segurança Pública (ISP), apontam que em 2017, foram 635 crianças e adolescentes assassinados no estado do Rio. Os números foram calculados a partir do cruzamento de registros da Polícia Civil e de instituições de saúde. O contexto é particularmente duro para os adolescentes: mais de um quarto (28,6%) dessas mortes são homicídios decorrentes de intervenção policial. Entre 2007 e 2017, a taxa de assassinatos nesta faixa etária subiu 68%. Ainda de acordo com o Dossiê, a letalidade violenta (que envolve homicídio doloso, homicídio decorrente de intervenção policial, lesão corporal seguida de morte e latrocínio) atinge principalmente os negros. No Rio de Janeiro, a taxa para “''crianças e adolescentes negros é de 45,3 vítimas por 100 mil habitantes negros de 0 a 17 anos, quase nove vezes maior do que a taxa entre as crianças e adolescentes brancos, 5,1 vítimas''”, mostra o documento. “''Ainda sobre o perfil das vítimas, há a predominância do sexo masculino (…), 95% (167 vítimas) dos homicídios decorrentes de intervenção policial e 89% (403 vítimas) dos homicídios dolosos foram perpetrados contra indivíduos do sexo masculino''”, revela o Dossiê.</p> <p style="text-align: justify;">Um dos casos que ganhou destaque internacional foi o do garoto Maicon, ocorrido há mais de 20 anos no Rio. Maicon tinha dois anos quando foi assassinado pela polícia na favela de Acari, Zona Norte da cidade. Jose Luiz Farias da Silva, pai de Maicon, vem há 23 anos denunciando a morte do filho e buscando respostas para o crime. “''O caso ficou como auto de resistência. De lá pra cá, virei militante. No dia 15 de abril completaram 23 anos de um caso absurdo na história não só do Rio de Janeiro, mas do país: uma criança ficou conhecida como marginal aos 2 anos de idade. O Brasil violou meu direito de ter a resposta sobre o caso. Mais ainda, eles violaram o direito à vida do meu filho''”<ref>Maicon assassinado com apenas 2 anos de idade pela polícia entre uma troca de tiros no bairro de Acari há 23 anos.</ref>, disse José Luiz. O mais surpreende é que o caso de<br/> Maicon prescreveu, mostrando incapacidade ou a falta de empenho nas investigações. Natália Damazio, que trabalhou como advogada e pesquisadora da ''ONG Justiça Global'', começou atuar no litígio (prática jurídica para quando não há consenso entre as partes) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre os anos de 2014 e 2015. “''Em relação ao assassinato do Maicon houve uma troca de tiros em Acari. Por isso se aplicou auto de resistência ao menino. Por falta de provas foi arquivado. Uma vez arquivado o caso, só novas provas conseguiriam abrir''”, explicou. Agora o caso é acompanhado apenas internacionalmente.</p> | |||
== Recado das autoridades é de garantia de impunidade == | |||
<p style="text-align: justify;">Assim como a de Maicon diversas outras mortes violentas de crianças e adolescentes acontecem cotidianamente. “''São vários casos de crianças, bebês assassinados pela polícia e é muito grave. Como são jovens negros moradores de favelas funciona todo aquele imaginário que parte da sociedade carrega de que são ‘sementinhas do mal’ ou coisa parecida''”, afirma Lucas Pedretti, historiador que pesquisa a violência de Estado na ditadura e na democracia.<br/> Para Pedretti é como se não importasse o que a pessoa fez. O fato de ser negro, morar numa favela, já faz com que não só desconfiem, mas digam que é criminoso. “''Quando ocorre com uma criança é ainda mais grave. É a ideia de que por ser negro, por morar ali na favela, aquela criança iria se tornar um bandido. Então essa execução, esse assassinato é visto como algo natural por parte expressiva da sociedade, que permite que esse tipo de coisa continue acontecendo. Fato é que ninguém merece tal tratamento''”, complementa.<br/> Uma série de questões fazem com que casos como o de Maicon não sejam investigados, entre elas o corporativismo policial e a criminalização da pobreza. Tais fatores transformam homicídios em “efeito colateral” ou “bala perdida”. “''Temos um grave problema em relação à perícia. Ela é feita pela Polícia Civil, sem que exista isenção. É preciso que se tenha uma perícia independente. O segundo ponto é quando se coloca como ‘auto de resistência’, na hora da denúncia é analisado que o fato ocorreu. Mas o fato não é punível porque tem-se a ideia de que a pessoa [o policial] não teve culpa do ato. Isto ocorre porque casos como estes acontecem em favelas. Não se investiga de quem parte o disparo, se investiga a vítima''”, observa a advogada Natalia Damazio.<br/> O pesquisador Lucas Pedretti lembra que sem julgamento caso a caso, acabam todos sem culpados. Uma verdadeira permissão para matar. “''Há uma legitimação das autoridades públicas também por causa da falta de interesse nas investigações. Esse aumento no número de auto de resistência é grave. Infelizmente a gente não pode dizer que surpreende, pois corresponde às expectativas quando se tem um governador que afirma que ‘vão mirar na cabecinha''”, critica.</p> | |||
= 3ª reportagem: Mães lutam para que os casos de seus filhos tenham respostas = | |||
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