Baile Funk: mudanças entre as edições

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  Autores: Adriana Facina e Dennis Novaes
O texto recupera as origens dos bailes funk no Rio de Janeiro, assim como o surgimento do ritmo funk, e analisa seus desdobramentos ao longo do tempo. Os autores, Adriana Facina e Dennis Novaes, são pesquisadores do tema. Adriana é antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades/UFF. Dennis é antropólogo, professor substituto no curso de Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense.
  Autoria: Adriana Facina e Dennis Novaes


== O som acima do normal ==
== O som acima do normal ==
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== Baile Funk: uma invenção dos anos 1980 ==
== Baile Funk: uma invenção dos anos 1980 ==
Os bailes funk não são um desdobramento direto dos bailes black, mas herdam seus elementos principais: música tocada em alto som, público de maioria negra, criatividade nas danças e uma moda característica. A sonoridade da bateria eletrônica se espalhou pelo mundo na década de 1980 e não foi diferente nos bailes cariocas. A expressão “funk” passou a ser usada neste período de forma genérica para se referir a uma variedade de gêneros musicais como o latin freestyle, miami bass, electro funk e hip-hop. Os bailes continuavam a crescer em quantidade e tamanho. Centenas de equipes de som organizavam festas por toda a cidade, reunindo milhares de pessoas. A equipe que tivesse os equipamentos de som mais potentes e as melhores músicas era a mais prestigiada. Os DJs eram contratados por elas de acordo com a sua habilidade para animar o público. Foi neste período que equipes de som como a Furacão 2000, Pipo’s, Cash Box e Soul Grandprix - algumas delas atuantes desde a década de 1970 - se consolidaram no imaginário não só de funkeiros cariocas como de fãs em várias cidades do país.
Os [[Big Boy e o Baile da Pesada|bailes funk]] não são um desdobramento direto dos bailes black, mas herdam seus elementos principais: música tocada em alto som, público de maioria negra, criatividade nas danças e uma moda característica. A sonoridade da bateria eletrônica se espalhou pelo mundo na década de 1980 e não foi diferente nos bailes cariocas. A expressão “[[Funk no Brasil: um panorama histórico da ascensão da cultura das comunidades|funk]]” passou a ser usada neste período de forma genérica para se referir a uma variedade de gêneros musicais como o latin freestyle, miami bass, electro funk e hip-hop. Os bailes continuavam a crescer em quantidade e tamanho. Centenas de equipes de som organizavam festas por toda a cidade, reunindo milhares de pessoas. A equipe que tivesse os equipamentos de som mais potentes e as melhores músicas era a mais prestigiada. Os DJs eram contratados por elas de acordo com a sua habilidade para animar o público. Foi neste período que equipes de som como a Furacão 2000, Pipo’s, Cash Box e Soul Grandprix - algumas delas atuantes desde a década de 1970 - se consolidaram no imaginário não só de funkeiros cariocas como de fãs em várias cidades do país.


DJs, donos de equipes e atravessadores de discos de vinis viajavam frequentemente para os Estados Unidos, especialmente Miami e Nova Iorque, para trazer as novidades para o Brasil. Conseguir uma boa música por meio de transações de discos bem sucedidas era parte de ser um bom DJ (Vianna: 1987; Braga: 2015). Importante notar que este era um mercado singular, já que a maioria das músicas não fazia parte do repertório da indústria fonográfica mainstream no Brasil, apesar do grande sucesso entre o público funkeiro. Muitos desses artistas eram desprestigiados nos Estados Unidos, porém tratados como celebridades no mundo funk carioca. A maioria dos bailes acontecia em clubes nos subúrbios da região metropolitana da cidade, mas também havia bailes em favelas e mesmo em escolas públicas.
DJs, donos de equipes e atravessadores de discos de vinis viajavam frequentemente para os Estados Unidos, especialmente Miami e Nova Iorque, para trazer as novidades para o Brasil. Conseguir uma boa música por meio de transações de discos bem sucedidas era parte de ser um bom DJ (Vianna: 1987; Braga: 2015). Importante notar que este era um mercado singular, já que a maioria das músicas não fazia parte do repertório da indústria fonográfica mainstream no Brasil, apesar do grande sucesso entre o público funkeiro. Muitos desses artistas eram desprestigiados nos Estados Unidos, porém tratados como celebridades no mundo funk carioca. A maioria dos bailes acontecia em clubes nos subúrbios da região metropolitana da cidade, mas também havia bailes em favelas e mesmo em escolas públicas.
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<span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Esses álbuns estimularam jovens artistas que antes eram apenas frequentadores das festas e que agora sonhavam ter suas próprias composições gravadas. Algumas dessas músicas se inspiravam em melodias de clássicos do miami bass e outros gêneros já citados enquanto outras combinavam características do samba, capoeira e manifestações musicais afro-brasileiras. Muitas destas canções fizeram sucesso em todo o país e consolidaram o funk carioca como um dos movimentos musicais mais populares da década de 1990. As gravações frequentemente tomavam como base rítmica faixas instrumentais de gêneros musicais norte-americanos. Entre elas, a mais popular era o “volt-mix”, retirada do lado B de um disco do DJ Battery Brain, artista radicado em Los Angeles cuja obra estaria mais próxima do ''electro funk ''(Palombini: 2017) .</span></span></span></span>
<span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Esses álbuns estimularam jovens artistas que antes eram apenas frequentadores das festas e que agora sonhavam ter suas próprias composições gravadas. Algumas dessas músicas se inspiravam em melodias de clássicos do miami bass e outros gêneros já citados enquanto outras combinavam características do samba, capoeira e manifestações musicais afro-brasileiras. Muitas destas canções fizeram sucesso em todo o país e consolidaram o funk carioca como um dos movimentos musicais mais populares da década de 1990. As gravações frequentemente tomavam como base rítmica faixas instrumentais de gêneros musicais norte-americanos. Entre elas, a mais popular era o “volt-mix”, retirada do lado B de um disco do DJ Battery Brain, artista radicado em Los Angeles cuja obra estaria mais próxima do ''electro funk ''(Palombini: 2017) .</span></span></span></span>
<p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Desde a década de 1980 existiam brigas nos bailes entre diferentes galeras, turmas de jovens identificadas a diferentes bairros e locais da região metropolitana do Rio de Janeiro. Nos anos 1990, foram criados os “bailes de briga”, que se tornaram uma variação de baile bastante comum no mundo funk, buscando tornar rentável a atividade guerreira que já estimulava a frequência dos brigões. Nestas festas, grupos de jovens se reuniam nos clubes para dançar, namorar e brigar com rivais. Os grupos eram formados de acordo com o local de moradia e, no princípio, &nbsp;não havia relação mais estreita entre eles e as facções que naquele período disputavam territórios nas favelas cariocas. As brigas eram institucionalizadas e a emoção derivada delas fazia parte da diversão. Como em um LP, o baile se dividia entre lado A e Lado B, fronteira marcada por um corredor guardado por seguranças que, no auge da euforia instigada pela música, relaxavam o controle para que os dois lados pudessem se confrontar.</span></span></span></span></p> <p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Os bailes de corredor foram usados pela mídia corporativa e por agentes estatais como um exemplo do potencial violento e perigoso dos jovens favelados, justificando, assim, perseguição aos bailes. Como sublinham diversos autores, já no início da década de 1990 veículos de comunicação passaram a associar o funk e a juventude favelada ao tráfico de drogas ilícitas e à violência urbana, entendida como sinônimo de violência armada (Lopes: 2010; Herschman: 1997; Facina: 2010; Mattos: 2006). Essa juventude é representada como “classe perigosa” que tinha no funk seu “grito de guerra incivilizado” contra os “civilizados valores dominantes” (Facina: 2010). Esse estigma que associava a juventude negra e favelada e o funk à criminalidade foi reiterado ao longo da década de 1990 por políticas estatais e pela grande mídia, produzindo não apenas um inimigo como sua respectiva trilha sonora.</span></span></span></span></p> <p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Como resposta a estas tentativas de criminalização funkeiros, donos de clubes e de equipes criaram os “festivais de galera”, que buscavam canalizar as disputas através de gincanas, danças e músicas. Ganham espaço neste período os raps “pede a paz”, que exaltavam as comunidades e pediam o fim da violência (Mattos: 2006, p. 34). Canções hoje clássicas como ''Endereço dos Bailes, ''dos MCs Júnior e Leonardo, ''Rap da Cidade de Deus'', de Cidinho e Doca e ''Rap do Salgueiro, ''de Claudinho e Buchecha, entre outras, são exemplos de músicas marcantes deste período.</span></span></span></span></p> <p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Os clamores por paz não impediram que os bailes fossem paulatinamente fechados e, ao fim da década de 1990, a maioria dos bailes em clubes havia sido extinta. Com os bailes tendo espaço cada vez mais restrito no asfalto, as favelas passaram a ser o principal ambiente de fruição do funk. Estes bailes já existiam desde a década de 1980, mas não tinham a proporção que alcançariam mais tarde. O final da década de 1990 também marcou a proliferação de bases que mixavam o volt-mix com ritmos afro-brasileiros. Mas nenhuma destas bases seria tão influente quanto o tamborzão.</span></span></span></span></p>  
<p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Desde a década de 1980 existiam brigas nos bailes entre diferentes galeras, turmas de jovens identificadas a diferentes bairros e locais da região metropolitana do Rio de Janeiro. Nos anos 1990, foram criados os “bailes de briga”, que se tornaram uma variação de baile bastante comum no mundo funk, buscando tornar rentável a atividade guerreira que já estimulava a frequência dos brigões. Nestas festas, grupos de jovens se reuniam nos clubes para dançar, namorar e brigar com rivais. Os grupos eram formados de acordo com o local de moradia e, no princípio, &nbsp;não havia relação mais estreita entre eles e as facções que naquele período disputavam territórios nas favelas cariocas. As brigas eram institucionalizadas e a emoção derivada delas fazia parte da diversão. Como em um LP, o baile se dividia entre lado A e Lado B, fronteira marcada por um corredor guardado por seguranças que, no auge da euforia instigada pela música, relaxavam o controle para que os dois lados pudessem se confrontar.</span></span></span></span></p> <p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Os [[Comunidade, território e bailes funk de corredor: Rio de Janeiro, década de 1990|bailes de corredor]] foram usados pela mídia corporativa e por agentes estatais como um exemplo do potencial violento e perigoso dos jovens favelados, justificando, assim, perseguição aos bailes. Como sublinham diversos autores, já no início da década de 1990 veículos de comunicação passaram a associar o funk e a juventude favelada ao tráfico de drogas ilícitas e à violência urbana, entendida como sinônimo de violência armada (Lopes: 2010; Herschman: 1997; Facina: 2010; Mattos: 2006). Essa juventude é representada como “classe perigosa” que tinha no funk seu “grito de guerra incivilizado” contra os “civilizados valores dominantes” (Facina: 2010). Esse estigma que associava a juventude negra e favelada e o funk à criminalidade foi reiterado ao longo da década de 1990 por políticas estatais e pela grande mídia, produzindo não apenas um inimigo como sua respectiva trilha sonora.</span></span></span></span></p> <p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Como resposta a estas tentativas de criminalização funkeiros, donos de clubes e de equipes criaram os “festivais de galera”, que buscavam canalizar as disputas através de gincanas, danças e músicas. Ganham espaço neste período os raps “pede a paz”, que exaltavam as comunidades e pediam o fim da violência (Mattos: 2006, p. 34). Canções hoje clássicas como ''Endereço dos Bailes, ''dos MCs Júnior e Leonardo, ''Rap da Cidade de Deus'', de Cidinho e Doca e ''Rap do Salgueiro, ''de Claudinho e Buchecha, entre outras, são exemplos de músicas marcantes deste período.</span></span></span></span></p> <p class="normal" style="text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span lang="EN" style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:">Os clamores por paz não impediram que os bailes fossem paulatinamente fechados e, ao fim da década de 1990, a maioria dos bailes em clubes havia sido extinta. Com os bailes tendo espaço cada vez mais restrito no asfalto, as favelas passaram a ser o principal ambiente de fruição do funk. Estes bailes já existiam desde a década de 1980, mas não tinham a proporção que alcançariam mais tarde. O final da década de 1990 também marcou a proliferação de bases que mixavam o volt-mix com ritmos afro-brasileiros. Mas nenhuma destas bases seria tão influente quanto o tamborzão.</span></span></span></span></p>  
== 2000: O Baile de Favela e o Tamborzão ==
== 2000: O Baile de Favela e o Tamborzão ==
Nos anos 2000 as favelas cariocas ocuparam um lugar de centralidade no funk. Uma favela foi especialmente importante neste período. Localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus lançou diversos artistas que marcaram uma segunda onda de sucesso nacional do funk. Deize Tigrona, Tati Quebra-Barraco, Bonde do Tigrão e Bonde do Vinho foram alguns dos artistas e grupos oriundos da CDD que gravaram sucessos eternizados para sempre no imaginário nacional. Estes MCs ajudaram a consolidar um novo subgênero no funk carioca que abordava a sexualidade de forma mais explícita e ficou conhecido como ''putaria''. Algo raro até então, este estilo tinha como característica uma grande presença de artistas mulheres. O rótulo ''putaria'', contudo, não foi adotado pelos artistas no início, especialmente pelas MCs, que se referiam à sua arte como “funk sensual” ou de “duplo sentido”. A obra destas mulheres levantou boas reflexões sobre a relação entre o funk e os feminismos (Adriana Lopes: 2010; Raquel Moreira: 2012; Mariana Gomes: 2015).
Nos anos 2000 as favelas cariocas ocuparam um lugar de centralidade no funk. Uma favela foi especialmente importante neste período. Localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus lançou diversos artistas que marcaram uma segunda onda de sucesso nacional do funk. Deize Tigrona, Tati Quebra-Barraco, Bonde do Tigrão e Bonde do Vinho foram alguns dos artistas e grupos oriundos da CDD que gravaram sucessos eternizados para sempre no imaginário nacional. Estes MCs ajudaram a consolidar um novo subgênero no funk carioca que abordava a sexualidade de forma mais explícita e ficou conhecido como ''putaria''. Algo raro até então, este estilo tinha como característica uma grande presença de artistas mulheres. O rótulo ''putaria'', contudo, não foi adotado pelos artistas no início, especialmente pelas MCs, que se referiam à sua arte como “funk sensual” ou de “duplo sentido”. A obra destas mulheres levantou boas reflexões sobre a relação entre o funk e os feminismos (Adriana Lopes: 2010; Raquel Moreira: 2012; Mariana Gomes: 2015).