Gentrificação e Favelas Cariocas: mudanças entre as edições

sem sumário de edição
Sem resumo de edição
Linha 1: Linha 1:
Palavras-chave:
O debate sobre gentrificação se difundiu mais recentemente no Brasil, no entanto, nos países anglo-saxões ele já vinha sendo discutido desde os anos de 1960 para tratar de um fenômeno urbano no qual a classe média, atraída pelos baixos preços dos imóveis dos bairros operários localizados em áreas centrais das cidades, passaram a ter esses espaços como opção de moradia. Assim, ao renovar casas antigas e atrair pouco a pouco a vinda de novos moradores de classe média, os bairros iriam se elitizando e perdendo sua característica popular.  
O debate sobre gentrificação se difundiu mais recentemente no Brasil, no entanto, nos países anglo-saxões ele já vinha sendo discutido desde os anos de 1960 para tratar de um fenômeno urbano no qual a classe média, atraída pelos baixos preços dos imóveis dos bairros operários localizados em áreas centrais das cidades, passaram a ter esses espaços como opção de moradia. Assim, ao renovar casas antigas e atrair pouco a pouco a vinda de novos moradores de classe média, os bairros iriam se elitizando e perdendo sua característica popular.  


Linha 25: Linha 27:
No caso das cidades brasileiras, o conceito ampliado de gentrificação permitiu identificar que diversas experiências de elitização de territórios populares se dão em maior medida no padrão de lazer, turismo e entretenimento, do que no padrão residencial. Os projetos de renovação urbana parecem atrair novos empreendedores, em geral de fora das localidades, e uma população de classe média para consumir bens e serviços que passavam a ser ofertados, e nem tanto para estabelecer residência (SIQUEIRA, 2014; NOVAES, 2018). Além disso, em muitos casos, essas experiências de gentrificação estariam atreladas à ação direta do Estado ao direcionar investimentos públicos para determinadas áreas da cidade em detrimento de outras, modificando legislações a favor do mercado e, em alguns casos, promovendo remoções das classes populares de áreas em processo de renovação urbana.
No caso das cidades brasileiras, o conceito ampliado de gentrificação permitiu identificar que diversas experiências de elitização de territórios populares se dão em maior medida no padrão de lazer, turismo e entretenimento, do que no padrão residencial. Os projetos de renovação urbana parecem atrair novos empreendedores, em geral de fora das localidades, e uma população de classe média para consumir bens e serviços que passavam a ser ofertados, e nem tanto para estabelecer residência (SIQUEIRA, 2014; NOVAES, 2018). Além disso, em muitos casos, essas experiências de gentrificação estariam atreladas à ação direta do Estado ao direcionar investimentos públicos para determinadas áreas da cidade em detrimento de outras, modificando legislações a favor do mercado e, em alguns casos, promovendo remoções das classes populares de áreas em processo de renovação urbana.


A discussão sobre o fenômeno da gentrificação em favelas cariocas iniciou no processo de reestruturações urbanas na cidade, no contexto da realização dos megaeventos esportivos da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. As favelas receberam um tripé de intervenções públicas, instrumentalizadas pelo discurso da “integração” à cidade como garantia de direitos. Esse tripé foi formado pela implementação das seguintes políticas: i) segurança pública, através do programa de unidade de polícia pacificadora -UPP; ii) urbanização, essencialmente os programas PAC-Favelas e Morar Carioca, envolvendo melhorias e instalação de equipamentos públicos; e iii) disseminação de um ideário empreendedorista, que estimulou a formalização de serviços já existentes e a abertura de novos, porém com padrão diferenciado e voltado a um público de classe média.  Além da legalização e consequente pagamento pelos inúmeros serviços antes acessados de maneira informal, foram observados estímulo ao microcrédito e ao pagamento de impostos comerciais.  
A discussão sobre o fenômeno da gentrificação em favelas cariocas iniciou no processo de reestruturações urbanas na cidade, no contexto da realização dos megaeventos esportivos da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. As favelas receberam um tripé de intervenções públicas, instrumentalizadas pelo discurso da “integração” à cidade como garantia de direitos. Esse tripé foi formado pela implementação das seguintes políticas: i) segurança pública, através do programa de unidade de polícia pacificadora -UPP; ii) urbanização, essencialmente os programas PAC-Favelas e Morar Carioca, envolvendo melhorias e instalação de equipamentos públicos; e iii) disseminação de um ideário empreendedorista, que estimulou a formalização de serviços já existentes e a abertura de novos, porém com padrão diferenciado e voltado a um público de classe média.  Além da legalização e consequente pagamento pelos inúmeros serviços antes acessados de maneira "informal", foram observados estímulo ao microcrédito e ao pagamento de impostos comerciais.
 
Alguns estudos apontam que os impactos dessas intervenções nas favelas do Rio de Janeiro, parecem ter gerado processos de gentrificação, em especial nas favelas localizadas na zona sul, área mais nobre da cidade. Vale destacar que a zona sul se configurou como a principal área de desenvolvimento econômico da cidade já no início do século XX e até os dias de hoje é a área mais valorizada e turística da cidade, possuindo importantes subcentros comerciais e de serviços. No entanto, desde o contexto de sua formação, muitas favelas se consolidaram na região. 
 
De fato as favelas da zona sul, em geral, são aquelas que possuem vistas mais atraentes, tornando-as especiais pela sua localização e mais vulneráveis a sofrer processos de gentrificação. Como exemplos, destacam-se os efeitos das intervenções públicas acima mencionadas nas nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, localizadas no morro Babilônia, no bairro do Leme, e da favela Vidigal, localizada entre os elitizados bairros Leblon e São Conrado.  


Alguns estudos apontam que os impactos dessas intervenções nas favelas do Rio de Janeiro, parecem ter gerado processos de gentrificação, em especial nas favelas localizadas na zona sul, área mais nobre da cidade. Vale destacar que a zona sul se configurou como a principal área de desenvolvimento econômico da cidade já no início do século XX. Foi neste período que o Estado despendeu grandes investimentos na região, dotando-a de infraestrutura urbana básica, como a instalação de redes de água, esgoto, iluminação, coleta de lixo, bondes elétricos e o calçamento da orla marítima (ABREU, 1997). Até os dias de hoje, a zona sul é a área mais valorizada da cidade, possuindo importantes subcentros comerciais e de serviços. No entanto, desde o contexto de sua formação, muitas favelas se consolidaram na região. É importante ressaltar que a permanência das favelas era tolerada, mas de forma provisória e precária nas encostas de morros e em áreas alagadiças (ABREU, 1997; VALLADARES, 1978), onde não havia interesse de exploração do mercado imobiliário. Além disso, segundo Gonçalves (2013), parte dessa tolerância se deu por manter a população próxima do mercado de trabalho, reduzindo o peso dos fatores de moradia e de transporte sobre o custo da mão de obra.
Pesquisas apontam para especulação imobiliária feita pelos agentes do mercado imobiliário local que gerou a elevação do valor de venda e aluguel de imoveis nessas favelas. Aliado a isso a formalização de serviços, antes acessados de forma informal, aumentou drasticamente o custo de vida nesses territórios, levando a saída de moradores para outras áreas da cidade ou mesmo para outras áreas da favela com piores condições de infraestrutura e habitabilidade.


De fato, as favelas situadas na Zona Sul do Rio de Janeiro, em geral, são aquelas que possuem vistas mais atraentes, tornando-as especiais pela sua localização e mais vulneráveis a sofrer processos de gentrificação.  
Além disso, pesquisas apontam mudanças no padrão do comércio e serviços, no perfil da população que circula e consome estes serviços. Observou-se, também, que os espaços onde antes ocorriam os bailes funk passam a ser ocupados por outros sons, como soul music, samba e jazz e esses espaços passam a cobrar valores de ingressos inacessíveis aos moradores.  


Como exemplos, destacam-se os efeitos dessas intervenções nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, localizadas no morro Babilônia, no bairro do Leme, e da favela Vidigal, localizada entre os elitizados bairros Leblon e São Conrado.  
Viu-se, assim, um processo de ressignificação das imagens desses territórios. A favela como o espaço das “classes perigosas” deu lugar à imagem da “favela chique”, “favela cult”, entre outros adjetivos jamais praticados nesses territórios estigmatizados. Empreendedores que nunca tinham entrado nas favelas, viram nesses espaços a possibilidade de abrir seu negócio na zona sul, aproveitando as potencialidades dessa região da cidade (como a natureza, o fluxo de turismo, a concentração de equipamentos culturais), com baixo custo na aquisição ou no aluguel do imóvel. Viu-se a multiplicação de hostels, agências de turismo, bares, casas de show, entre outros, voltados notadamente a um público de classe média e não morador da favela. Seguindo a onda de valorização, alguns comerciantes aumentaram os preços de seus produtos e aqueles moradores com maiores recursos se tornaram também empreendedores
Inicialmente poderia se chamar a atenção para o diferencial do preço do solo urbano existente entre essas favelas e o seu entorno, relativamente desvalorizadas em razão do abandono pelo poder público, da ocupação por classes populares e da violência, tornando-se áreas atrativas tendo em vista seu potencial de valorização. O baixo preço do solo urbano e dos imóveis poderia tornar atrativa essas áreas para os agentes do mercado imobiliário que, promovendo a renovação urbana das mesmas, poderia se beneficiar da incorporação do potencial de valorização decorrente das suas privilegiadas localizações.
Além disso, pesquisas apontam que ocorreram mudanças no padrão do comércio e serviços, no perfil da população que circula e consome estes serviços, além do encarecimento do custo de vida e novas oportunidades criadas para venda e aluguel de imóveis por valores nunca praticados na favela. Observou-se, também, que os espaços onde antes ocorriam os bailes funk passam a ser ocupados por outros sons, como soul music, samba e jazz e esses espaços passam a cobrar valores de ingressos inacessíveis aos moradores.


Além disso,viu-se uma completa ressignificação das imagens desses territórios. A favela como o espaço das “classes perigosas” deu lugar à imagem da “favela chique”, “favela cult”, entre outros adjetivos jamais praticados nesses territórios estigmatizados. Empreendedores que nunca tinham entrado nas favelas, viram nesses espaços a possibilidade de abrir seu negócio na zona sul, aproveitando as potencialidades dessa região da cidade (como a natureza, o fluxo de turismo, a concentração de equipamentos culturais), com baixo custo na aquisição ou no aluguel do imóvel. Viu-se a multiplicação de hostels, agências de turismo, bares, casas de show, entre outros voltados notadamente a um público de classe média e não morador da favela. Seguindo a onda de valorização, alguns comerciantes aumentaram os preços de seus produtos e aqueles moradores com maiores recursos se tornaram também empreendedores
No entanto, pelo menos até o momento, parece pouco provável apostar no desaparecimento das classes populares destes espaços. De fato, estas favelas nunca deixaram de se constituir em territórios populares e majoritariamente ocupadas por população afrodescendente. Nesse sentido, os processos de gentrificação das favelas parecem mais complexos e enfrentam barreiras expressas pelas contradições na atuação do poder público nos territórios favelados, as dinâmica socioespacial das cidades brasileiras, as regulações territoriais e as resistências e contestações da população.
No entanto, pelo menos até o momento, parece pouco provável apostar no desaparecimento das classes populares destes espaços. De fato, os processos de renovação urbana das favelas parecem mais complexos, envolvendo contradições, barreiras e resistências sociais, o que exige o uso de novas categorias analíticas, mais apropriadas para a interpretação desta dinâmica socioespacial.  


Nesse sentido, a abordagem ampliada em torno da gentrificação não consegue apreender plenamente as especificidades do fenômeno no Brasil. Assim, incorporar as características das cidades brasileiras pode contribuir para a compreensão da multidimensionalidade desse processo que combina práticas espaciais, regulação territorial, vida cotidiana, resistências e contestações da população.
Uma das barreiras para a transformação do perfil popular das favelas pode ser entendido pela sua representação simbólica, associada ao lugar da carência, da pobreza e da marginalidade, conformando o que poderia ser caracterizado como estigma territorial (Wacquant, 2001). Além disso, os programas de urbanização embora tenham contribuído para melhorias em parte da infraestrutura, muitos projetos de saneamento, habitação, drenagem e etc que são necessários e urgentes foram paralisados ou se quer iniciadas. Outro fato relevante é que a partir de 2016, observa-se que o programa das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) começa a sofrer uma grave crise, com a diminuição do efetivo policial, corte de verbas e aumento da violência em várias favelas do Rio, incluindo as que estão situadas na Zona Sul. Esses fatores parecem bloquear os incipientes processos de gentrificação.


A partir de 2016, observa-se que o programa das UPPs começa a sofrer um uma grave crise, com a diminuição do efetivo policial, corte de verbas e aumento da violência em várias favelas do Rio, incluindo as que estão situadas na Zona Sul. A segurança entra em crise, bloqueando os incipientes processos de gentrificação. De fato, estas favelas nunca deixaram de se constituir em territórios populares. Os incipientes processos de ressignificação simbólica e de apropriação destes territórios por agentes econômicos que ofereciam serviços e comércios destinados às classes médias e altas (tais como hostels, bares e restaurantes) ocorreram reproduzindo a estrutura socioespacial da cidade, que se caracteriza pela perversa combinação entre proximidade física e distância social, bem como suas contradições e conflitos, que eclodem sistematicamente no cotidiano.
As resistências locais organizadas ou não organizadas de moradores podem ser vistas, de alguma forma, como barreiras aos experimentos de gentrificação. Proliferaram nas favelas ações políticas para questionar o aumento do custo de vida nas favelas, tais como eventos culturais, debates entre moradores e agentes públicos e privados, guiamento turístico de resistência e etc.  
Uma das barreiras para a transformação do perfil popular das favelas é a sua representação simbólica, associada ao lugar da carência, da pobreza e da marginalidade, conformando o que poderia ser caracterizado como estigma territorial (Wacquant, 2001). As favelas são reconhecidas por serem territórios populares e majoritariamente ocupadas por população afrodescendente.
Assim, as transformações urbanas das favelas envolvem processos mais complexo, que combinam remoções, despossessões, expulsão das classes populares e novas formas de apropriação do espaço, embranquecimento da população que frequenta e consome os serviços ofertados pelos estabelecimentos comerciais, entrelaçado e convivendo com processos de permanência, afirmação da cultura afro-brasileira, resistência e insurgências, reconfigurando o conflito em torno da apropriação do espaço.


Assim, para interpretar as experiências de elitização nas favelas e nos territórios populares na cidade do Rio de Janeiro parece mais adequada a ideia de gentrificação periférica (NOVAES, 2018), pois tendo em vista as contradições apontadas acima, o conceito tradicional não parece levar em conta as características específicas dos territórios populares e seus conflitos em torno da apropriação do território e de suas marcas simbólicas, em especial, o conflito em torno do embranquecimento e da afirmação da cultura afrodescendente. Nesse contexto, parece pouco provável que as favelas sofram um amplo e profundo processo de gentrificação. No entanto, a opção por continuar utilizando o conceito com o adjetivo periférico quer sublinhar possíveis processos de relativa elitização de algumas práticas comerciais e de determinadas áreas das favelas, em decorrência de projetos de renovação urbana promovidos pelo poder público e pelos agentes privados.
Assim, os processos de gentrificação das favelas são complexos combinando a expulsão das classes populares e o embranquecimento da população que frequenta e consome os serviços ofertados pelos estabelecimentos comerciais, com processos de permanência, afirmação da cultura afro-brasileira, resistência e insurgências, reconfigurando o conflito em torno da apropriação do espaço. Nesse sentido, para interpretar as experiências de elitização nas favelas e nos territórios populares na cidade do Rio de Janeiro apontamos a ideia de gentrificação periférica (NOVAES, 2018), pois tendo em vista as contradições trazidas acima, o conceito tradicional de gentrificação não consegue explicar as características específicas das favelas e seus conflitos, em especial aqueles conflitos em torno da apropriação do território e de suas marcas simbólicas que envolvem o embranquecimento e da afirmação da cultura afrodescendente. Nesse contexto, parece pouco provável que as favelas sofram um amplo e profundo processo de gentrificação. No entanto, a opção pela ideia da gentrificação periférica quer sublinhar processos de relativa elitização de algumas práticas comerciais e especulação imobiliária em determinadas áreas das favelas, em decorrência de projetos de renovação urbana promovidos pelo poder público e pelos agentes privados.


Bibliografia  
Bibliografia  
Linha 69: Linha 70:


VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
Autores
Patrícia Ramos Novaes - Assistente Social, doutora em Planejamento Urbano e Regional e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles. Se dedica aos estudos sobre favelas cariocas, urbanização neoliberal, segregação socioespacial e gentrificação.
Orlando Alves dos Santos Junior - Sociólogo, doutor em Planejamento Urbano e Regional, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
8

edições